Uma decisão judicial recente chamou atenção ao aplicar instrumentos jurídicos para evitar a perpetuação de violências de gênero no ambiente processual. O juiz da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Belém (PA), João Augusto Figueiredo de Oliveira Júnior, determinou que fossem riscados termos considerados ofensivos contra a requerente de uma medida protetiva no âmbito da Lei Maria da Penha. A decisão se amparou no artigo 78, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, que autoriza esse tipo de medida quando a linguagem utilizada afronta a dignidade da parte.
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No caso, o magistrado analisou que as palavras "grosseira" e "espalhafatosa", utilizadas na petição do ex-companheiro da autora, configuravam expressões desrespeitosas, incompatíveis com o caráter imparcial e respeitoso que deve nortear o ambiente judicial. Além disso, essa conduta judicial reforçou o compromisso da Justiça em combater narrativas que perpetuam machismo ou preconceitos de gênero.
Relevância da medida judicial
A decisão vai além da simples risca de palavras: reflete um esforço contínuo do Judiciário em reconhecer a necessidade de julgamento com perspectiva de gênero, prática que vem sendo implementada há anos com base em protocolos como os do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O protocolo visa combater padrões estereotipados que, historicamente, desqualificam ou diminuem a credibilidade de mulheres em processos judiciais, destacando que o próprio instrumento processual pode se tornar um veículo de violência simbólica.
Ao determinar o risco das expressões, o juiz enviou uma mensagem clara de que agressões sutis contra gênero, ainda que dentro de petições judiciais, não serão aceitas. A decisão garantiu também medidas protetivas para a autora, como o afastamento mínimo de 100 metros entre os envolvidos e proibição de visitação na casa da ex-companheira, salvo exceções autorizadas previamente para buscar a criança em comum.
Conflito entre direito à liberdade de expressão e proteção à dignidade
A escolha judicial trouxe consigo um debate importante: até que ponto o direito à liberdade de expressão, uma garantia constitucional, pode ser limitado em prol de proteger a dignidade das partes em um processo? No caso em análise, prevaleceu a necessidade de evitar que o procedimento judicial fosse usado como extensão de possíveis humilhações vivenciadas fora do tribunal. Como indicou o magistrado, ofensas dirigidas à mulher denunciante podem ser consideradas, nesse contexto, prolongamento de um ciclo de violência emocional ou simbólica.
Isso demonstra que, longe de apenas avaliar fatos e circunstâncias isoladas, o Judiciário brasileiro está cada vez mais atento à linguagem e ao impacto que ela gera dentro de processos, especialmente aqueles envolvendo violência de gênero. Para Hugo Leonardo Pádua Mercês, advogado da autora, palavras ofensivas são expressões de um sistema machista, que precisa ser erradicado integralmente. Ele ressaltou que "violência de gênero não pode ser usada como estratégia processual".
Implicações futuras no Judiciário
Esta decisão é mais uma amostra de como o sistema judicial está sendo adaptado para melhor lidar com circunstâncias sociais sensíveis. Juízes de diferentes estados já têm aplicado diretrizes semelhantes na luta contra preconceitos. O caso reforça que princípios legais como igualdade, dignidade e respeito devem caminhar junto ao combate de discursos discriminatórios, inclusive em documentos processuais.
Esse entendimento pode repercutir amplamente em diferentes esferas do Direito, alimentando debates como o uso de discursos discriminatórios não só em questões de família, mas também no trabalho, nos contratos civis e mesmo em lides criminais. A aplicação de julgamentos com perspectiva de gênero ganha ainda mais importância em sociedades historicamente marcadas por desigualdades, como ocorre no Brasil.
É relevante observar o impacto que sentenças como esta terão no treinamento de magistrados e na redação de peças processuais. A adoção de acepções respeitosas e livres de preconceitos passa a ser uma exigência não apenas moral, mas também técnica, considerando que o descumprimento pode levar tais trechos a serem desconsiderados.
Com a redação do artigo 78 do CPC, aliada às recentes diretrizes do CNJ, o Judiciário brasileiro dá passos decisivos para fortalecer um ambiente processual mais justo e livre de violência simbólica, especialmente em casos envolvendo a Lei Maria da Penha.
Referências: Processo 0818290-87.2024.8.14.0401. Mais informações sobre o combate à violência contra a mulher podem ser acessadas neste link.
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Redação
Redação jornalística da Elias & Cury Advogados Associados.