
A relação entre cooperativas de crédito e seus associados envolve peculiaridades jurídicas que as diferenciam fundamentalmente das operações financeiras tradicionais. Com a introdução do §13º ao artigo 6º da Lei nº 11.101/2005, ficou expresso que os atos cooperativos estão excluídos dos efeitos de recuperação judicial, o que gerou debates sobre a sua aplicação prática.
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Apesar da clareza legislativa, setores do Judiciário resistiam a aplicar essa exclusão, alegando que determinadas operações estariam mais alinhadas à lógica mercantil do que ao espírito cooperativista. Recentemente, o STJ reforçou o reconhecimento jurídico da natureza única do ato cooperativo.
Conceito e estrutura do ato cooperativo
O ato cooperativo é definido pelo artigo 79 da Lei nº 5.764/1971 como toda atividade realizada entre cooperado e a própria cooperativa, com o objetivo de atingir a finalidade social da entidade. Esse vínculo não configura relação de mercado, tampouco contrato de compra e venda.
A estrutura do cooperativismo se ancora na mutualidade, participação democrática e finalidade não lucrativa. Toda receita gerada que supera os custos operacionais é devolvida aos próprios cooperados, sob a forma de sobras proporcionais à sua participação. Tal dinâmica quebra a lógica empresarial tradicional e afasta a finalidade especulativa do modelo cooperativo.
Jurisprudência do STJ consolida natureza do ato
O Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o Recurso Especial nº 2.091.441/SP (publicado em 28 de maio de 2025), firmou a corrente segundo a qual o ato cooperativo se manifesta automaticamente quando há atuação entre cooperativa e associado, desde que em consonância com os objetivos sociais previstos no estatuto.
Na fundamentação conduzida pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o tribunal reconheceu que a simples emissão de instrumentos como a Cédula de Crédito Bancário (CCB) não descaracteriza a natureza cooperativa da operação — desde que mantido o vínculo associativo e os propósitos estatutários.
Dessa forma, reiterou-se que o ato cooperativo não pode ser analisado como operação financeira de mercado por mais que seus instrumentos pareçam semelhantes em termos formais. A diferença está na essência da relação, e não nas formas documentais.
Distinção frente às operações de mercado
A tentativa de comparar cooperativas a instituições financeiras comuns ignora a gênese do cooperativismo. Enquanto bancos visam maximizar lucros para acionistas externos, cooperativas operam para beneficiar seus próprios associados, que são ao mesmo tempo donos e usuários dos serviços.
Além disso, as instituições cooperativas têm uma experiência distinta no Sistema Financeiro Nacional (SFN). Conforme a Lei Complementar nº 130/2009, as cooperativas de crédito atendem exclusivamente seus associados, baseando-se em princípios de ajuda mútua e participação igualitária na gestão.
Mesmo quando as operações se apresentam como linhas de crédito com taxas de juros, isso não as transforma automaticamente em operações de mercado. O objetivo da cobrança desses juros é cobrir os custos operacionais e garantir a sustentabilidade da cooperativa — não gerar lucros para terceiros.
Impactos na recuperação judicial
Com base no artigo 6º, §13º, da Lei nº 11.101/2005, o crédito derivado de ato cooperativo não deve ser submetido aos efeitos da recuperação judicial. Ainda que um produtor rural ou empresário esteja em dificuldade financeira, a dívida contraída junto à cooperativa de crédito na condição de associado não poderá ser incluída no plano recuperacional.
Interpretar em sentido contrário, como alguns juízes faziam antes da consolidação dada pelo STJ, seria o mesmo que tentar responsabilizar um cooperado por uma obrigação perante a si mesmo. Afinal, ao final do ciclo financeiro, tanto o crédito concedido quanto os eventuais rendimentos retornam à esfera patrimonial dos cooperados.
Tal entendimento decorre do reconhecimento da autonomia jurídica do ato cooperativo, o que foi fundamental para o recente posicionamento do STJ, representando um avanço expressivo na segurança jurídica do setor cooperativista.
Posição constitucional e amparo legal
A Constituição Federal confere status privilegiado ao cooperativismo como modelo econômico. O artigo 174, §2º, determina que o Estado deve apoiar e estimular o cooperativismo, e o artigo 192 reconhece expressamente as cooperativas como integrantes do Sistema Financeiro Nacional.
Desconsiderar a natureza jurídica do ato cooperativo equivaleria a ferir a própria Constituição, já que implicaria negar as prerrogativas que esse modelo possui enquanto alternativa de desenvolvimento econômico sustentável e regionalizado.
É importante lembrar que decisões fiscais anteriores do STJ, como no REsp 1.173.577/MG, já haviam reconhecido esse papel singular ao conceder isenções de PIS e Cofins para receitas oriundas de atos cooperativos de crédito. A recente decisão no REsp 2.091.441/SP apenas estende essa lógica ao campo da recuperação judicial.
Conclusão da Corte fortalece o cooperativismo
O julgamento unânime da 3ª Turma do STJ consolidou a interpretação de que a operação de crédito realizada por cooperativa de crédito com seus próprios associados constitui ato cooperativo pleno. Esse posicionamento, além de resguardar a autonomia do setor, inibe distorções que poderiam colocar o cooperativismo em posição desfavorável frente a instituições financeiras tradicionais.
Assim, os créditos decorrentes dessas operações não podem ser alcançados por recuperação judicial, o que promove segurança para as cooperativas e estabilidade para seus associados. Tal entendimento alinha-se às diretrizes constitucionais e valoriza o modelo de negócio pautado na solidariedade e distribuição.

Redação
Redação jornalística da Elias & Cury Advogados Associados.